Transecrise


"TRANSECRISE" é o livro de juventude do autor, publicado em 1980, reunindo contos, poemas e outros textos. Nele sobressai uma incrível imaginação, construtora de imagens que brotam do inconsciente e que adquirem sentido a partir de raciocínios delirantes. Sua escrita une figuras surrealistas, metáforas poéticas, ideias místicas e ideogramas mágicos, compondo um conjunto díspar em forma e conteúdo. Expressa um subjetivismo atemporal, mas pode ser compreendido também a partir da época em que foi escrito – final dos anos 60 e início dos anos 70 – ou seja, a adolescência de uma geração que, alienada e amordaçada pela ditadura do Brasil de pós-64, fechada em si mesma, enlouquecia ouvindo os ecos da rebelião da juventude em todo o mundo. É desta época o seu experimentalismo linguístico feita de fluxo contínuo, onde as palavras se associam por sons e ritmos, e as orações fogem dos cânones de sintaxe, permitindo inclusive o surgimento de novos vocábulos. A obra é um jogo de comunicação e solidão, uma dualidade feita de sons e silêncios.

Trecho da Obra "Transecrise"

Ontem, meus dias foram noites de loucura, um grande festim em que brindava o prazer, o riso, o momento fugaz de um fogo fátuo. Hoje, minhas noites são como dias de insônia, em que me arde a consciência, e onde meus olhos em chamas cansaram de ver. Estou cego ao futuro. Não quero ver, tocar, cheirar, sentir, nada mais além desta parede, além deste quebra-cabeça feito de segundos, anos-luz e elétrons. Quisera perder-me de vez, talvez assim alguém ou algum deus me encontrasse. Estou no deserto e perdido, mas não de todo. Sei que as miragens são miragens, sei da realidade das tempestades de areia e sei do sol a arder em meu cérebro. Meus pés caminham em círculos arrastando uma sombra. Mas um dia não mais deixarei pegadas, não mais carregarei comigo alguma sombra. Enquanto isto, só me resta o grito ou o silêncio. E dentre estes, prefiro a companhia do silêncio, é mais sutil, mais acolhedor, se espalha e dói melhor nos ouvidos.

Às vezes, tenho a nítida impressão de que minha solidão se povoa. (Mas não quero impressões nem ajuntamentos!) E, além disso, os meus fantasmas, ou melhor, meus companheiros, são mais propriamente bichos que humanos. São olhos de coruja que à noite me fitam iluminando o meu rastro. São serpentes que me desenham ideogramas e mandalas na areia. São falcões que cruzam suas sombras com a minha. São meus pés dois lagartos a se arrastarem pelas dunas.