O Controle da Raiva

             Vivemos tempos de discórdia, em que a violência aumenta no mesmo nível em que aumentam a radicalização e a incapacidade de diálogo. Daí ser pertinente pensar na prática budista que prega o adaptar-se às circunstâncias e o não responder a elas pela raiva. O mestre Bodidharma afirma que todos deveriam aceitar os acontecimentos nefastos sem reclamar de injustiça, considerando que não sabemos que karma trazemos do passado, ou melhor, que ações fizemos que produziram os frutos que estamos colhendo agora. Concordo de que é aconselhável não se perturbar com as adversidades, porém, discordo da visão de que estamos aqui para purgar culpas, e que a melhor resposta seria a aceitação, o que daria à Marx razão quando afirma que “a religião é o ópio do povo”. Até podemos estar colhendo erros do passado, mas não para purga-los, e sim para tomarmos consciência e aprender com eles. Assim, a melhor resposta às adversidades não é a aceitação passiva, e sim a ação necessária para mudar as circunstâncias ou superá-las. Mas, é claro, que tal ação deve ser feita sem raiva e perturbação de espírito. 

            A ciência descobriu que as grandes raivas nascem das pequenas raivas. Ou seja, são as irritações cotidianas, quando alimentadas por nós, com pragas, reclamações e lamentações, ou mesmo com ofensas e respostas pequenas de ódio, que alimentam em nosso interior a capacidade de cometer grandes atos de violência contra terceiros. Afinal, na nossa insatisfação acumulada contra o mundo e todos, podemos perder o pé do autocontrole, e descambar para o cometimento de atos reprováveis e até crimes hediondos. São as irritações no trânsito, as brigas com o cônjuge, a insatisfação no trabalho, as noites mal dormidas, as contas no vermelho, enfim, tudo e qualquer coisa é motivo para transbordar o pote do ódio.

            Por isto o controle da raiva nasce de uma vigilância constante em relação a nós mesmos, de modo a observarmos os nossos sentimentos, percebendo o veneno presente neles, mas deixando que eles se manifestem na consciência, só bloqueando-os quanto à ação. E para isto nada melhor que uma cultura de paz, ou seja, uma consciência tolerante diante do mundo, uma compreensão cristã de que todos somos iguais, e de qualquer forma de discriminação nasce de uma doença do sentir e do olhar. Se alguém erra comigo, me ferindo objetiva ou subjetivamente, isto justifica que busque justiça e reparação de danos, mas sem espírito de vingança e nem ódio destrutivo. E nada justifica a violência em qualquer de suas formas. O princípio de “não matar” deve ser ampliado no sentido de respeito a toda e qualquer forma de vida, de respeito ao meio ambiente, assim como no sentido de “não ferir”, não produzir sofrimento em outros. Pois quando fazemos os outros felizes, somos felizes juntos. Daí que, quando ferimos os outros, nos ferimos a nós mesmos. Somos nós que nos machucamos com a cultura de violência. E como já disse alguém, as armas querem matar. E, como defendeu Gandhi, “a maior coragem é a coragem de morrer” e não a pseudo coragem de matar, pois quem se arma (excetuando-se os que têm a profissão das armas) no fundo é um medroso, que por saber-se fraco precisa de uma arma para artificialmente sentir-se um forte.

            Enfim, como budista preciso não me perturbar com as injustiças, mesmo sem aceitá-las e lutando contra elas (com as armas da palavra e da verdade). Afinal, adaptar-se às circunstâncias implica no controle da raiva, e nada ajuda melhor a esta atitude que a compreensão de que tudo passa (e até se inverte e reverte), e todos, indistintamente, teremos um mesmo destino.