Yoga e Consciência
O livro YOGA & CONSCIÊNCIA, publicado pela primeira vez em 1984 e tendo sua 4ª edição revisada pelo autor, aborda o problema da consciência nos Yoga-Sutras de Patânjali. A obra de Patânjali (do século III a.C.) reúne as ideias centrais da filosofia do Yoga, compondo o que é chamado de Yoga clássico. Os Yoga-Sutras são compostos de 4 livros sintéticos, de uma profundidade ímpar, a ponto de serem considerados quase incompreensíveis em sua versão original. Antonio Henriques expõe o conteúdo dos Sutras de forma clara e compreensível, explicitando que a obra de Patânjali é uma filosofia psicológica de grande atualidade. O autor traça paralelos do Yoga com a ciência, a filosofia e a psicologia contemporâneas, demonstrando também os vínculos dos Yoga-Sutras com a cultura autóctone da Índia Antiga, dos drávidas, em oposição a um Yoga posterior, de forte influência ariana. Assim, não só resgata a meditação e as posturas corporais como o cerne do Yoga, como elucida e mapeia os estados alterados de consciência que os praticantes visam atingir. Esta obra foi o primeiro trabalho acadêmico, sério e investigativo sobre filosofia indiana, escrito por um brasileiro, que se somou a outros escritos de renomados especialistas internacionais.
Trecho da obra “Yoga e Consciência”
APEGO À VIDA (ABHIVESHA)
“Svarasavâhí vidusho ‘pi tathá rúdho’ bhiniveshah”.
“Abhinivesha é o forte desejo de viver, que ‘se mantém por sua própria natureza’ (svarasaváhi= pelas próprias forças), e que domina (rúdhah) até mesmo os ‘sábios’ (vidushah = instruídos)”. (Yoga Sutra de Patânjali – 11,9)
Como já é lugar comum em filosofia, a única certeza da vida é a morte. O homem é um ser-para-morte. E todos nós temos medo de morrer. A morte assusta por dois lados: pelo desconhecido que ela representa em si, e pelo esvaziamento que ela produz na vida. A morte significa o ingresso no não-ser, tomando o ser como a atual circunstância do que somos e que nos cerca. Mas a morte assim também significa o abandono do ser, este rompimento com a existência.
O instinto de sobrevivência é o mais poderoso, todos estamos apegados à vida, temos medo de não-ser. Mesmo a supressão dos pensamentos (vrittis) a que se propõe o Yoga, relaciona-se a tal medo. Nós estamos sempre pensando coisas pelo simples medo de deixar de ser, porque o ego é nada mais que a sensação de continuidade que existe em nosso fluxo mental, o eu pensante cartesiano deveria ser entendido de outra maneira. Se nós pensamos, o ato de pensar existe. No entanto, o eu existirá só se este ato de pensar for contínuo. Mas nós sabemos que o que a criança que nós fomos pensava, nada tem a ver com o que o adulto que hoje somos pensa, a não ser uma linha de continuidade ligando aqueles pensamentos a estes. Porém, entre um pensamento e outro existe um intervalo de silêncio. Este silêncio deve ser fixado e alargado, e ele é não-eu, descontinuidade, não-pensar, mas existe. Ou seja: “penso, logo, existo”, não como “aquilo que pensa” mas como processo pensante, “aquilo” não pensa. “Aquilo” (Tat) é o Si que brota quando os pensamentos (vrittis) estão suprimidos, quando o pensamento como ato cessa. E isto é morrer como ego sem deixar de existir. Por isso se pode falar de uma experiência da morte em vida. .
No ocidente fala-se que a experiência da morte em vida se dá na morte do outro e, principalmente, na morte do “irmão”. Porém, que são os outros para nós senão partes de nós? Em verdade, sempre choramos pela nossa própria morte, tomada aqui como rompimento com a dimensão do nosso ser, vinculado e dependente do próximo, recém-finado. Mas a experiência de morte em vida, de que trata o Yoga, é mais radical, não é apenas a perda de um pedaço, não é uma mutilação. Equivale realmente à perda de um todo, em que uma estrutura de ego se desfaz completamente. A iluminação equivale à morte, a palavra samádhi tem, a partir de sua raiz, também o significado de “morto”. O guru nasce da morte do discípulo, assim como também o discípulo nasceu da morte do homem profano.
Entretanto, diz Patânjali, que o apego à vida assola até os mais sábios, nem o guru escapa de vacilar diante da morte. Isto porque um ser realizado possui latentes todas as fontes de sofrimento (kleshas), seu ego não mais atua de modo dominante, por não estar mais no centro, mas ainda existe. E existirá enquanto houver um corpo humano vivo ocupando um certo lugar no mundo. Não é fácil nascer – e que é a morte senão um segundo nascimento? É preciso coragem para, voluntariamente, cortarmos o cordão umbilical com o mundo.
E quando escrevemos isto, não estamos falando dos suicidas, porque quem se mata, assim o faz pelo mundo. O ego, a frustração, o desespero e a depressão profunda conduzem o suicida à morte, à loucura do crime, ao patológico de uma auto-agressão. Mas, paradoxalmente, o suicida é quem mais quer viver, e está apegado ao mundo. Cortar voluntariamente o cordão umbilical com o mundo é “entregar o espírito” e não o corpo, é marchar seguro ao encontro do novo, e não ceder ao desespero do velho.
O Yoga não é uma filosofia niilista, apesar de o apego à vida ser nela tomado como algo a ser superado. Pensamos que toda a filosofia deveria ser uma preparação (não mórbida) para a morte. E que é saber morrer, senão viver no sentido mais pleno? Quem tiver amado a vida e encarado a existência com sabedoria, não terá medo da morte, porque a morte é a outra face da vida, e quem conhece e ama uma face intuirá a unidade de ambas, e não fugirá da totalidade. Quem se converte em luz, não terá jamais medo de mergulhar no escuro.