Memórias da Tempestade

           

          O livro “MEMÓRIAS DA TEMPESTADE” consiste num romance que mescla ficção, ensaio e memórias. Seu personagem central é, simultaneamente, ator, espectador e narrador: ele vive, relata e medita, contando suas memórias do nascimento até após a sua morte. Suas reflexões, originais na forma e no conteúdo, contrastam luz e sombra, e abordam questões como: amor, sexualidade, racismo, violência, juventude, drogas, religião, espiritualidade, política, velhice, doença e morte, o sentido filosófico da existência e outros temas.

           O personagem central, sem nome, é despido de heroicidade, e a história desenrola-se numa perspectiva intimista, dramática, profunda e complexa. Alguns sonhos são descritos, acentuando a subjetividade do texto. Os capítulos flertam com outros gêneros literários, como o conto, a crônica, o ensaio e a poesia, compondo um mosaico de universalismo pós-moderno.

Trecho da Obra "Memórias da Tempestade"

Aquilo que nós chamamos “morte” foi para mim a descida por um túnel escuro e circular, em que deslizava em direção à luz do seu final. Conforme me movia, lento e leve qual nuvem levada pelo vento, percebia que tal túnel conduzia a um outro mundo: luminoso, claro, brilhante e ofuscante em equivalência à luz do sol. Meu corpo não possuía peso nem densidade, era uma névoa resplandecente e transparente, a pairar no espaço como um meigo beija-flor. Um silêncio em mim soava de modo similar a um zumbido de abelhas ou ao dobrar de sinos ao longe. Chegando ao final do túnel, me vi envolto numa luz dourada e me deparei com alguém que me esperava. Era um ser diáfano, que irradiava um sorriso amoroso enquanto vinha ao meu encontro. Havia uma serenidade tão grande e uma paz tão profunda no ar que eu diria estar no céu, que para mim sempre existiu em meu sentimento de felicidade. Foi quando percebi que tal ser, semelhante a um anjo, era uma mulher…

Então presumi que estava morto, mas sem que este pensamento me inquietasse. Veio-me à mente minha esposa e meu filho, e um desconforto percorreu meu ser como um estremecimento. Desejei voltar, fechei os olhos e me vi de olhos abertos num quarto de hospital.

Acordei de um profundo sono, mas continuei sonhando. Não sentia o peso do meu corpo e os objetos possuíam uma luminosidade própria, que brotava de dentro, como se não houvesse uma fonte emissora de luz. Percebi então que tudo vibrava e que as coisas não tinham mais aquela estaticidade própria da matéria. Passou por minha mente a consciência de que estava enfermo e de que o meu estado poderia equivaler à morte. Um tremor invadiu-me com a impressão de que o desconhecido me assediava e ameaçava. Tentei tocar as paredes próximas, que foram atravessadas sem esforço, como se a matéria fosse uma etérea nuvem, visível à distância, mas transparente e impalpável na proximidade: aterrorizado estava. Lembrei-me de um texto sagrado: “olhou para todos os lados e não viu senão a si mesmo: o que temer então?“. Olhando ao redor, fui me acalmando e relaxando. Respirando fundo pensei: seja o que seja, valerá a pena penetrar noutro mundo e conhecer o obscuro e o estranho, comprovar e aplicar os meus conhecimentos ocultos. Principiei então a testar as características místicas de uma realidade mágica, estudada por mim em antigos alfarrábios. Pensei firmemente numa árvore e a vi adquirir forma sobre a minha cabeça. Desejei estar numa rocha à beira-mar da praia de Cabo Branco, e eis que instantaneamente me vi lá, admirando o oceano de ondas espumantes. Olhei então para o meu corpo, velho e decrépito, e desejei ser de novo jovem. E fui me transformando até adquirir a aparência que tive aos trinta anos. Compreendi então que não estava mais num universo de matéria física, que meu corpo de carne e osso provavelmente se decompunha numa cova qualquer de um cemitério da cidade onde eu vivia. Estremeci por dentro uma vez mais, não propriamente de medo, mas compreendendo a fascinante experiência pela qual passava em absoluta solidão.

(…)

O anjo da morte estava junto de meu leito de moribundo há meses, porém, decidira ele que não era ainda a hora de eu partir, era preciso que eu sofresse mais, que sobrevivesse ainda. A minha consciência se embotava mesclando alucinação e realidade, fazendo com que eu sonhasse acordado. De algum modo eu passara a viver em dois mundos, ao mesmo tempo entre os vivos e os mortos. (…)

Para mim, as emoções e os sentimentos nunca foram fatores de equilíbrio, daí a excentricidade, pois os homens não gostam de aprofundar as coisas. Preferem a acomodação obesa diante da agitação da superfície, já que não sabem encarar obstáculos assumindo riscos. O essencial na minha vida não é o que vivi, tampouco o que amei ou o que fiz. O principal reside no que restou do que fiz e que me foi possível, e que aponta para além do que fiz e pretendi. Para lá da ação encontramos a reflexão e, além desta, a intuição, a visão direta, a revelação do sagrado. Recordar é não só lembrar dos feitos, mas principalmente, compreender o sentido e a direção deles a partir dos seus efeitos. O fato não é apenas ação, é toda e qualquer dimensão verdadeira, mesmo a travestida de paixão e loucura. (…)